António,
Tenho imensas coisas que te dizer e não sei o que hei-de dizer, tão arreliada estou e tão sem cabeça para pensar a coisa mais insignificante deste mundo. Que linda noite, tu vais passar, Amigo querido! E eu? A pensar que a maldade e a estupidez desta vida que no nosso desgraçado país é um horror, me pode fazer o mal maior que a alguém se pode fazer. Tenho medo, tenho medo, meu amor. Este desassossego contínuo põe-me doente e faz-me doida.
Então eu hei-de passar a minha triste vida a tremer por ti? Eu tenho pouca sorte, e quando enfim encontro no meu caminho alguém que gosta de mim, por mim, como se deve gostar, que pensa na minha felicidade, no meu sossego, alguém que se digna ver que eu tenho alma a sentir, quando encontro enfim no mundo o que julgara não encontrar nunca, hei-de andar como o avarento a tremer pelo tesoiro que levou anos, uma vida inteira a conquistar e que lhe podem roubar num momento. Eu tenho pouca sorte! Que Deus tenha piedade de mim.
Quereria dizer-te muitas coisas mas nem sei o que; só tenho vontade de chorar e de gritar desesperadamente, com a cabeça enterrada nas almofadas para ninguém me ouvir. Se tu não tivesses vindo hoje, o que seria de mim, toda esta imensa noite sem saber de ti. E quantas noites hei-de eu passar assim! É impossível que eu resista muitos anos à vida passada assim. Antes Deus me leve depressa, depressa, depressa. O que estás tu agora a fazer, amor? São quase 2 horas e estou ansiosa a querer ouvir não sei o quê, a querer escutar, a querer adivinhar o que lá fora se passa. Uma porta que se fecha, um cavalo que passa a galope, um grito, sobressaltam-me como se um perigo imenso me ameaçasse.
Amanhã, se isto estiver assim, se estiveres de prevenção, não vou ao teatro, com certeza. Como posso eu aturar aquilo? Para estar a aborrecer os outros, é melhor ficar em casa a tremer como uma pateta que sou. Mas eu tremo por ti que és o meu único amigo, que és o meu noivo, aquele que só pensa em mim e na felicidade de toda a minha vida. Em mim não me afadigo a pensar. Não há meio de morrer, de desaparecer por uma vez, bem coberta de terra, bem esquecida de todos. De ti, não. Sou má, perdoa-me. Tenho a certeza que me mandarias crisântemos brancos e rosas vermelhas que são minhas flores predilectas. Tenho a certeza que não me esquecerias. Mas tu não queres que eu fale nestas coisas, pois não? Falemos antes da nossa casinha, do nosso ninho que há-de ser como aquele de que falavam os rouxinóis:
"O nosso ninho é pequeno
Mas chega bem para dois."
Não é assim, meu amor? A propósito de casa, quero falar contigo para ver se te convém uma coisa que pensei e em que já falei aqui à Margarida. Amanhã te direi ou quando puder ser. Manda notícias, sim? Ama-te muito a tua Bela.
Florbela Espanca, in 'Carta a António Guimarães (1920)'
Tenho imensas coisas que te dizer e não sei o que hei-de dizer, tão arreliada estou e tão sem cabeça para pensar a coisa mais insignificante deste mundo. Que linda noite, tu vais passar, Amigo querido! E eu? A pensar que a maldade e a estupidez desta vida que no nosso desgraçado país é um horror, me pode fazer o mal maior que a alguém se pode fazer. Tenho medo, tenho medo, meu amor. Este desassossego contínuo põe-me doente e faz-me doida.
Então eu hei-de passar a minha triste vida a tremer por ti? Eu tenho pouca sorte, e quando enfim encontro no meu caminho alguém que gosta de mim, por mim, como se deve gostar, que pensa na minha felicidade, no meu sossego, alguém que se digna ver que eu tenho alma a sentir, quando encontro enfim no mundo o que julgara não encontrar nunca, hei-de andar como o avarento a tremer pelo tesoiro que levou anos, uma vida inteira a conquistar e que lhe podem roubar num momento. Eu tenho pouca sorte! Que Deus tenha piedade de mim.
Quereria dizer-te muitas coisas mas nem sei o que; só tenho vontade de chorar e de gritar desesperadamente, com a cabeça enterrada nas almofadas para ninguém me ouvir. Se tu não tivesses vindo hoje, o que seria de mim, toda esta imensa noite sem saber de ti. E quantas noites hei-de eu passar assim! É impossível que eu resista muitos anos à vida passada assim. Antes Deus me leve depressa, depressa, depressa. O que estás tu agora a fazer, amor? São quase 2 horas e estou ansiosa a querer ouvir não sei o quê, a querer escutar, a querer adivinhar o que lá fora se passa. Uma porta que se fecha, um cavalo que passa a galope, um grito, sobressaltam-me como se um perigo imenso me ameaçasse.
Amanhã, se isto estiver assim, se estiveres de prevenção, não vou ao teatro, com certeza. Como posso eu aturar aquilo? Para estar a aborrecer os outros, é melhor ficar em casa a tremer como uma pateta que sou. Mas eu tremo por ti que és o meu único amigo, que és o meu noivo, aquele que só pensa em mim e na felicidade de toda a minha vida. Em mim não me afadigo a pensar. Não há meio de morrer, de desaparecer por uma vez, bem coberta de terra, bem esquecida de todos. De ti, não. Sou má, perdoa-me. Tenho a certeza que me mandarias crisântemos brancos e rosas vermelhas que são minhas flores predilectas. Tenho a certeza que não me esquecerias. Mas tu não queres que eu fale nestas coisas, pois não? Falemos antes da nossa casinha, do nosso ninho que há-de ser como aquele de que falavam os rouxinóis:
"O nosso ninho é pequeno
Mas chega bem para dois."
Não é assim, meu amor? A propósito de casa, quero falar contigo para ver se te convém uma coisa que pensei e em que já falei aqui à Margarida. Amanhã te direi ou quando puder ser. Manda notícias, sim? Ama-te muito a tua Bela.
Florbela Espanca, in 'Carta a António Guimarães (1920)'
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